Corposinalizante: beijo de mundos e lĂnguas

Por Cibele Lucena
O grupo Corposinalizante surgiu em 2008, como desdobramento do curso de formação para jovens surdos “Aprender para Ensinar”, realizado pelas artistas-educadoras Cibele Lucena e Joana Zatz Mussi no MAM-SP. Ao longo deste tempo fizemos ações urbanas, performances, documentários e há trĂŞs anos nos dedicamos ao “Slam do Corpo”, uma batalha de poesias criada em parceria com o poeta Daniel Minchoni (Sarau do Burro) e com o NĂşcleo Bartolomeu de Depoimentos (ZAP!SLAM). Â
O “Slam do Corpo” nasceu do nosso desejo de produzir encontros poĂ©ticos e performáticos entre corpos surdos e ouvintes, entre a lĂngua portuguesa e a Libras.  Nosso maior interesse Ă© inventar uma lĂngua mestiça, produzir dizeres numa vizinhança entre estes distintos modos de existĂŞncia. Temos trabalhado com duplas de poetas – um surdo e um ouvinte – que criam e apresentam poesias nas duas lĂnguas simultaneamente.  Em suas performances, as vezes as lĂnguas se diferenciam, cada uma acontece em sua gramatica prĂłpria; noutras vezes, se entrecruzam. Este tempo-espaço, ora paralelo, ora indiscernĂvel, Ă© o que temos chamado de “beijo de lĂnguas”.
Durante dĂ©cadas escolas de diferentes partes do mundo proibiram as lĂnguas de sinais forçando os surdos a oralizarem na tentativa de colocar em extinção esta lĂngua, este corpo, esta existĂŞncia. Nas salas de aula as tradicionais carteiras escolares de madeira eram máquinas torturantes. Monstros paralisantes capazes de emudecer um corpo que vibra. Por medo. A cadeira, objeto simples e comum, era a materialização do medo do corpo, do corpo-ameaça. Cordas presas a seus pĂ©s amarravam Ă força as mĂŁos de crianças surdas, imobilizavam seus braços, que silenciados, violentados, eram impedidos de falar sua lĂngua.
Em um Congresso Internacional de Educadores de Surdos realizado em 1880 em MilĂŁo, uma votação – da qual os professores surdos foram excluĂdos – elegeu o “oralismo” como mĂ©todo Ăşnico e absoluto para educar surdos ao redor do mundo. A partir do final do sĂ©culo XIX as lĂnguas de sinais foram entĂŁo proibidas nas escolas, que passaram a usar diferentes dispositivos para normalizar estes corpos.

Para abrir esta conversa Ă© importante dizer que sĂŁo inĂşmeros os modos surdos e que, portanto, a ideia de “surdez” funciona como uma categoria de contraste, como nomeia o antropĂłlogo Pedro Cesarino – quando em nome de um modelo Ăşnico de existĂŞncia afirma que um corpo nĂŁo se adĂ©qua a sua genĂ©rica ideia de normalidade. Dizer isso nĂŁo Ă© de forma alguma negar a importância de diagnĂłsticos e providĂŞncias mĂ©dicas, mas Ă© acreditar que as decisões sobre um corpo devem nascer dele mesmo, de suas forças e desejos, nĂŁo de uma orientação clĂnica que sequestra suas singularidades, impondo a necessidade de corrigi-lo.
No SimpĂłsio “Slam do Corpo – novo jeito de falar, novo jeito de ouvir” que organizamos em 2015, o professor e pesquisador surdo Rodrigo Rosso[3] nos disse, Na pesquisa que eu faço eu nĂŁo falo em surdez, falo em um corpo humano, falo em existĂŞncia. Dentro de um grupo de surdos eu nĂŁo me sinto surdo. Isso Ă© um pensamento ouvinte que resulta de uma visĂŁo clĂnica que quer nos concertar.
Em uma noite de poesias em um dos saraus da cidade, Lara Gomes, integrante do Corposinalizante, se lançou no centro de uma roda formada por poetas, rappers e outros experimentadores da palavra. Ela misturou sinais ainda tĂmidos com uma voz estranha à “escuta-ouvinte”, acostumada com a potĂŞncia da palavra falada. Suas mĂŁos sinalizavam hesitantes enquanto sua voz revelava: Mundo ouvinte, mundo surdo… Sem escutar, sou ouvinte desde pequena, surda há um ano. Sem sinais na infância, falo pelos cotovelos… e seguiu experimentando na sua condição movente encontrar palavras para contar como se descobriu surda aos vinte anos de idade. E agora? Agora? Sou inteira! Ela anunciou, enfaticamente, no meio de sua apresentação bilĂngue e bimodal[4].
Este movimento de abertura pode acontecer naturalmente na prĂłpria famĂlia, especialmente quando o surdo Ă© filho de pai ou mĂŁe (ou ambos) surdos. Mas na maioria das vezes a criança cresce em uma famĂlia de ouvintes da qual nĂŁo herda nem a lĂngua materna, nem a consciĂŞncia de integrar uma comunidade que carrega outras formas de corpo, de lĂngua, de relação com o espaço, com o som etc. E a hegemĂ´nica ideia de que a surdez Ă© um problema ainda sujeita crianças aos diversos tratamentos disponĂveis para “disfarça-la”, minimizando ao máximo sua aparĂŞncia.
Para conquistar a lĂngua de sinais como primeira lĂngua e o engajamento com a força-surdo, a criança precisa frequentar uma escola que a alfabetize linguĂstica e politicamente – mas a escola nĂŁo Ă© espaço feito para isso, ao contrário, quase sempre se mantĂ©m como lugar de reprodução de formas de subordinação do corpo vivo e mĂşltiplo a um modelo disciplinar. Assim, os inĂşmeros modos surdos sĂŁo tambĂ©m os inĂşmeros modos de tornar-se surdo, infinitos desafios que cada corpo atravessa para conquistar este corpo-lĂngua-povo prĂłprios.
Me conectei com os surdos em 2002 quando inauguramos o curso Aprender para Ensinar no MAM-SP.  AtĂ© esse momento via a surdez como uma deficiĂŞncia fĂsica com a qual poderĂamos trabalhar, tanto na arte quanto na educação, a partir de programas de inclusĂŁo e acessibilidade.  Mas instaurando um processo artĂstico, politico e educativo com os jovens, reconhecemos que a experiĂŞncia era da ordem da vizinhança, do encontro entre forças, e nĂŁo de um curso para deficientes.

O encontro entre corpos e mundos provoca crises, vazios, resistĂŞncias, mas tambĂ©m cria redes e amizades. Em nosso caso, isso se apresenta muitas vezes nos ajustes entre os ritmos e pulsões das duas lĂnguas em jogo. Se instalar em uma entre-lĂngua Ă© mexer no vespeiro das certezas, tencionar a lĂłgica da soberania de um mundo sobre o outro, destituir poderes.
Para Leonardo Castilho, que integra o Corposinalizante desde sua criação, tornar-se surdo tem muito a ver com pensar nĂŁo a partir da palavra. Ou seja, o pensar nĂŁo se inicia com uma palavra que precisa ser simultaneamente traduzida por um sinal enquanto o pensamento acontece. Pensar em Libras Ă© renunciar a palavra e consentir o nascente, o novo[5], a partir do corpo, do corpo como lĂngua.
Nos processos de criação do grupo, Leonardo nĂŁo se interessa pela produção de poemas bimodais, seu desejo Ă© criar direto em Libras, como ele diz. E muitas vezes crises aparecem nos momentos de tradução de seus poemas – momentos que existem pelo prĂłprio fato do grupo ser composto por surdos e ouvintes e tambĂ©m porque este tem sido nosso lugar de pesquisa, entender a tradução como transcriação, como nomeou Haroldo de Campos, feitura de um outro corpo que se acopla ao primeiro nĂŁo para explicá-lo, mas para produzir uma mutação que desdobra sua força. AĂ reside uma traição; afinal, como dar palavra Ă quilo que Ă©, em si, o abandono dela? Em crises como esta, vividas enquanto urgĂŞncia, nos instalamos para experimentar isso que chamamos beijo de mundos e lĂnguas.

O Corposinalizante nos impulsiona à criação de uma pedagogia acesa, que vai se abrindo enquanto se faz. Dispositivos (ferramentas, estratégias e etc.) são inventados a partir de cada urgência que se apresenta pedindo para ser performatizada. É a partir dai que o grupo desenvolve um processo de investigação onde todos aprendem e ensinam a partir do encontro.
Certa vez experimentávamos diversas formas de relação entre corpo, espaço e sinais. Cada participante do grupo escolheu um enunciado e brincávamos com eles em Libras. Dávamos comandos, um apĂłs o outro, em ritmo de jogo: os sinais deveriam ir do mais rápido ao mais lento, do menor gesto ao maior, ocupando o mĂnimo e o máximo espaço, com mais ou menos pressĂŁo, mais fluidos, contĂnuos, ou mais pausados, interrompidos.
Diante do pedido para diminuir ao máximo sua sentença escolhida, ocupando o menor espaço possĂvel – Há sempre um copo de mar para um homem navegar, verso do poeta alagoano Jorge de Lima – Felipe subitamente curvou seu corpo puxando para perto do peito uma de suas mĂŁos, que em concha fazia o sinal de “barco”. A necessidade fez com que ele fizesse de todo o seu corpo a frase, tornando-se homem e copo a um sĂł tempo.

AlguĂ©m percebeu a potĂŞncia daquele gesto-imagem criado e nos arremessou para ele: a frase nĂŁo estava mais sendo dita a partir da sequĂŞncia inicial de sinais; a lĂngua de sinais habitava todo seu corpo e nĂŁo apenas suas mĂŁos; a poesia alargava a lĂngua; o gesto condensava algo que, sem saber exatamente como anunciar, sentĂamos como urgĂŞncia há meses: a potĂŞncia que existe na conexĂŁo entre a lĂngua de sinais, a poesia e a performance.
Pensando sobre o acontecimento, Felipe Lima disse:
Quase todos os surdos sempre habitam apenas as mĂŁos, porque a lĂngua está nas mĂŁos. Agora falta mostrar o corpo, atravĂ©s da performance, mostrar que existe uma relação de todo o corpo e usar uma linguagem de todo o corpo.
Os corpos sĂŁo inteiros, nĂŁo faz sentido trabalhar com pedaços. E corpos inteiros, vulneráveis uns aos outros, se relacionando, resultam em negociações; desconfortos sempre foram recorrentes e compartilhados. A travessia expõe as pessoas, coletivizando-as, nĂŁo no sentido de fundi-las, de todos virarem uma coisa sĂł, mas no sentido de que cada corpo ali Ă© um corpo exposto e visĂvel, e a qualidade dos vĂnculos Ă© condicionante para que isso aconteça.
O que atravessa cada um é matéria comum, colocada sobre a mesa (ou no centro da roda), mesmo quando não se torna um conteúdo sobre o qual falar ou se debruçar, mesmo enquanto não-dito, está ali como afeto.

A disponibilidade do corpo é, então, por colocar-se em uma vizinhança que inclui estranhamentos e tensões; colocar-se em estado de vulnerabilidade. Se colocar vulnerável ao outro é ir até um limite do próprio corpo. Nesse limite, onde/quando muita coisa escorre e desaba, mora a potência da vida, ela mesma material, terrena, força de incorporação, que quebra o medo de se transformar, de se perder para se reencontrar, de produzir outros lugares para “si mesmo”.
Uma travessia realizada por corpos afetados mutuamente Ă©, para nĂłs, estĂ©tica, polĂtica e tambĂ©m educativa. É o que entendemos por obra, princĂpio Ă©tico e por escola. Esses processos nos formam a todos – todos os que se conectam a ele. E foi dai, do lugar da vulnerabilidade e do desejo que nos avizinhamos dos surdos.
Este percurso-escola foi nos permitindo desenhar novas cartografias em conexĂŁo e tensĂŁo com a cartografia existente das forças, com a cidade, o museu, a escola, com a histĂłrica luta surda, com suas urgĂŞncias macro-polĂticas. Mas foi o engajamento com o estado de vulnerabilidade que, em exercĂcio, permitiu que coisas novas pudessem ser gestadas. Afinal, a coisa tem que vir do corpo; do corpo habitado, vivo.
[1] Cibele Lucena é artista e educadora. Atualmente é mestranda do Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP e bolsista do CNPq. Coordena o grupo Corposinalizante junto com Joana Zatz Mussi desde sua fundação em 2008.
[2] Os trabalhos do grupo podem ser vistos no canal do youtube , na página do facebook ou no site do coletivo.
[3] Rodrigo Rosso é Prof. Dr. surdo da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador do curso presencial de Letras Libras. Este trecho aqui transcrito é parte de sua conferência no Simpósio Slam do Corpo – novo jeito de falar, novo jeito de ouvir, coordenado pelo grupo Corposinalizante no Centro de Pesquisa e Formação do SESC, São Paulo-SP, de 23 a 28 de novembro de 2015.
[4] Nome dado Ă comunicação que se dá com o uso concomitante da fala e dos sinais, nĂŁo apenas duas lĂnguas, mas dois modos de lĂngua.
[5] Como pontua Deleuze, pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo, o que está em vias de se fazer. DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. – São Paulo: Ed. 34, 1992. Pág. 13.